quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Filósofos Morais: Sócrates


          Sócrates, com seu foco na figura humana, inaugura a ética e abre o espaço para o desenvolvimento de toda a filosofia ocidental. Com sua constante refutação e ironia levava ao parto das ideias - a maiêutica, em homenagem a sua mãe parteira -, pelo hábito de questionamento despertou muitos sobre as necessidade de se repensar e quebrar determinados equívocos e paradigmas mal-resolvidos, anteriores a uma reflexão. O hábito de questionar desde os mais letrados e relevantes homens da Pólis até os jovens e homens simples revelando o estado de ignorância em que se encontravam provocou reações tanto positivas quanto negativas na cidade ateniense; hábito este que indubitavelmente alterou toda a história ocidental dando de presente a humanidade não só ideias estanques e discípulos que desenvolveram e/ou reforçaram sua filosofia, mas uma completa base para o conhecimento e modo como conhecer, reverberando desde a política, a ciência e a moral.
          Tratando o problema ético como um problema de conhecimento, buscava esclarecer os transeuntes da cidade por um confronto de perguntas que ironicamente levavam esses pedestres ao reconhecimento de sua ignorância frente à ideias relacionadas e mesmo essenciais a vida sócio-política, tão cara ao ideal grego. O confronto dialético em Sócrates é uma questão de diálogo. Contudo, todo este posicionamento de Sócrates em relação ao homem e sua postura ética é somente posterior à visão de tal filósofo em relação ao homem e a descoberta de sua essência; essência esta fundada na alma.

"Com Sócrates a filosofia alcançou um novo momento originário e inaugural: pela primeira vez o homem tornou-se tema da discussão filosófica. Este será o único assunto de Sócrates, inesgotável capítulo central de todas as teorias filosóficas posteriores.
Nas conversas e discursos, nas ruas e praças de Atenas, Sócrates insistia na necessidade de restaurar a imagem do homem, que deveria volta à sua interioridade, 'conhecer a si mesmo', e recuperar seu valor e dignidade moral. Esta é a base para que tenhamos um bom cidadão numa polis justa. Portanto, a ética nasce com os temas centrais, nunca esgotados, do bem, da virtude, do valor da pessoa e da sociedade justa.
Portanto, esse discurso não nasceu de uma genial intuição do sábio que medita em seu gabinete ou na montanha. Nasceu de um contexto sociopolítico em decadência vertiginosa. A ética nasceu nas praças, na análise dos fatos negativos que Sócrates via e vivia. [...]
Sócrates maduro lamentava o declínio do esplendor de Atenas, as lutas políticas marcadas exílio de Alcebíades, até a instauração do regime oligárquico dos Trinta Tiranos no ano de 404 a.C."
Olinto Pegoraro
Ética dos maiores mestres através da história.


"A democracia ateniense assegurava aos cidadãos o exercício da função legislativa: integrantes da Ekklesia (assembléia popular), podiam e deviam participar da elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da cidade. Mas o regime democrático impunha também aos cidadãos a obrigação de defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condição de membros das cortes populares, assumiam o compromisso — através do juramento heliástico — de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para a cidade-Estado e seu povo.
No ano 399 a.C, o tribunal dos heliastas, constituído por cidadãos provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-se com 500 ou 501 membros. Difícil tarefa aguardava esses juízes: julgar Sócrates, conhecida mas controvertida figura. Cidadão admirado e enaltecido por alguns — particularmente pelos jovens —, era, entretanto, criticado e combatido por outros, que nele viam uma ameaça para as tradições da polis e um elemento pernicioso à juventude. Indiscutível era seu destemor, de que já dera provas em tempos de guerra, como notória sua independência pessoal, manifestada não apenas em seu modo peculiar e inconvencional de viver, mas também em circunstâncias especiais — como quando se negou à conivência com sórdida trama política urdida pelos Trinta Tiranos que durante algum tempo haviam dominado Atenas. Mas o que sobretudo o caracterizava era a atividade a que vinha se dedicando há anos e que justamente suscitava o deleite e a admiração dos jovens, enquanto noutros despertava ressentimentos: conversar. Despreocupado com os bens materiais — cujo acúmulo era o objetivo da maioria —, usufruindo os prazeres sem se atormentar em viver à sua cata, mas também sem deles fugir em exageros ascetas, Sócrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua missão — a missão que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um 'vagabundo loquaz': dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a fazê-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as habilidades que lhes eram atribuídos. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a emitir opiniões referentes à sua própria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questões habilmente formuladas por Sócrates — que alegava que 'apenas sabia que nada sabia' — era, com freqüência, tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados à prova, muitos supostos talentos e muitas reputações de sapiência revelavam-se infundados e muitas idéias vigentes e consagradas pela tradição manifestavam seu caráter preconceituoso e sua condição de meros hábitos mentais ou simples construções verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorância da própria ignorância: situação que, não sendo ultrapassada, prenderia a alma num estéril engano e, o que era mais trágico ainda, deixá-la-ia distante de si mesma, apartada de sua própria realidade. Para alguns — os que aceitavam submeter-se à fase construtiva da dialogação socrática —, aquele reconhecimento da ignorância do justo significado das palavras representava a oportunidade de um verdadeiro renascimento: o renascer na consciência de si mesmo, condição preliminar para a tomada de posse da própria alma. Para outros, porém, era o esboroar do prestígio em plena praça pública. Ou então era a instauração de questões e dúvidas ali onde há séculos perdurava a cega certeza dos preconceitos e das crendices: no campo dos valores morais e religiosos, que orientavam a conduta dos indivíduos mas também serviam de alicerces às instituições políticas."
Coleção "Os Pensadores" - Sócrates
Editora Nova Cultural, 1987.