quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Justice - Qual a coisa certa a fazer? (Traduzido)



Justice - O Lado Moral do Assassinato (Episódio 1 - Parte I)





Justice - O Caso de Canibalismo (Episódio 1 - Parte II)




"O curso Justice - Qual a coisa certa a fazer? é um dos mais populares na História da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, uma das mais conceituadas do mundo. Em cada aula de Justice, quase mil estudantes lotam o teatro para ouvir o professor Michael Sandel falar sobre justiça, igualdade, democracia, cidadania. Sandel ensina Filosofia Política em Harvard desde 1980. As palestras e discussões envolvem dilemas morais que desafiam nossos conceitos e nos forçam a pensar sobre decisões que poderemos ter de tomar em nossa vida cotidiana."


          O canal da Univesp TV no Youtube disponibilizou toda a série Justice do professor Michael Sandel com legendas em português. Os episódios originais de aproximadamente 55 minutos foram divididos em duas partes de acordo com o desenvolvimento das aulas em que se encontram lições de Kant, Locke, Rawls etc. de forma que ao todo encontramos 24 episódios. Confira o canal clicando aqui.


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte III)



  • A Felicidade
          O homem é matéria e forma, isto é, enquanto matéria, ele busca satisfazer seus sentidos (comendo, bebendo, praticando lazer), mas também busca a satisfação do espírito (alegra-se através da atividade intelectual e dos sucessos sociais). Satisfazer tais necessidades é ser feliz. Poderia então a felicidade erigir-se como critério moral de modo que o que me faz feliz é também moral? Não!, ensina Kant, pois o problema da felicidade está em que ela atende apenas as condições individuais já que aquilo que me satisfaz pode não satisfazer o outro. Com isso, é impossível que a felicidade sirva de lei universal, não podendo assim tornar-se princípio de determinação moral. Só a lei moral transcende os sentidos, os fenômenos e a causalidade empírica e ela está no nível da razão. Sendo transcendente, a liberdade pode dar-se a si mesma sua lei e determina seus fins independente das exigências do mundo sensível. A consciência moral convoca então o homem de modo imperativo a superar sua natureza imperfeita, buscando seu verdadeiro ser que é o ser moral. Tornando-se moral, ele se torna senhor de si. Buscar a felicidade seria ainda agir por interesse e ação moral é desinteressada.

  • O Dever
          A moralidade é prescritiva. Isso significa que a ação moral traz consigo uma ação para agir e é neste sentido que ela é um imperativo categórico. Mesmo que eu aja contra a moralidade, não posso ignorar o fato de que ela dá a mim uma razão para agir, ela é o motivo para que eu aja. O valor de uma ação moral está em que ela se realiza por um senso de dever. Não se trata de simplesmente fazer o que se quer. Neste caso, a ação não teria nenhum valor moral.

          Kant distingue entre ações “em conformidade com o dever” e ações praticadas “por dever”. São estas últimas que mostram o mérito do agente, pois a ação conforme o dever não é feita em razão dele. A ação por dever é aquela que tem sua razão de ser no dever e não numa outra razão qualquer. Não se trata de ser frio e indiferente agindo unicamente por dever, sem amor e compaixão, mas sim que aquele que age por dever o faz por uma convicção própria. Agir movido por nossas paixões e emoções seria um agir mecânico negador da liberdade. Mas a compaixão pode perfeitamente ser um dever se eu o elejo como tal e ajo por causa dele. Para Kant, o que confere valor moral a uma ação é a máxima, ou seja, o princípio subjetivo segundo o qual o agente age. Deus, como ser finito e que possui uma vontade santa, não precisa de uma máxima que oriente sua ação, mas nós, seres finitos cujos desejos podem se desviar do dever, precisamos de uma norma para agir. Assim, uma ação praticada por dever afasta totalmente a possibilidade de agir por inclinação ou por qualquer outro objeto que determinasse a vontade, “exceto objetivamente a lei e subjetivamente o puro respeito por essa lei prática...”. Respeito aqui significa “a consciência da subordinação de minha vontade a uma lei, sem intervenção de outras influências sobre a minha sensibilidade” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes). Agir movido por um sentimento seria ainda permanecer no nível da natureza sensível. O respeito é “o efeito da lei sobre o sujeito e não sua causa”. Trata-se aqui de ter consciência racional a respeito da lei objetiva que me motiva a agir. O motivo da ação moral tem de ser livre de toda condição sensível.
          Já a ação conforme o dever não possui nenhum mérito por parte do agente, pois neste caso ele estará apenas fazendo uma ação lícita, por inclinação apenas, isto é, ele é legal ao conformar sua ação ao conteúdo da lei. Vê-se então uma diferença importante, na ética kantiana, entre legalidade e moralidade. A vida política, por exemplo, exige apenas a ação conforme o dever.

  • O Imperativo Categórico
          Dizer que a lei moral é racional significa dizer que ela é conhecida a priori, isto é, não é aprendida da experiência. Kant formula o imperativo categórico assim: age unicamente segundo uma máxima tal que ao mesmo tempo possas querer que ela se torne uma lei universal. Isso significa que a máxima subjetiva deve se conformar à lei universal. A universalidade aqui é uma exigência da razão e não significa apenas que ela se aplica a todos os seres humanos, mas também que ela exige de nós tratar igualmente casos iguais. Um exemplo dado pelo próprio Kant nos ajuda a entender essa característica da lei moral. Alguém precisa de dinheiro por se encontrar numa situação difícil e decide tomá-lo emprestado mesmo que tenha a intenção de não devolvê-lo. Isso exigiria deste indivíduo formular seu princípio da seguinte maneira: toda vez que precisar de dinheiro, devo tomá-lo emprestado mesmo que saiba que não poderei pagá-lo. Isso exigiria que cada um pudesse agir segundo essa mesma máxima pois, segundo o imperativo, eu devo “agir unicamente segundo aquela máxima que eu posso ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”. Neste caso, por ser impossível racionalmente universalizarmos a falsa promessa como a do exemplo acima, esta ação está contra a moralidade. Eu não posso querer uma falsa promessa como lei universal, pois isso destruiria a credibilidade de qualquer promessa.

          Para tornar mais clara a formulação do imperativo categórico, Kant ainda oferece dela uma segunda versão como a que segue: age como se a máxima de tua ação devesse se tornar por tua vontade uma lei universal da natureza (Cf. Fundamentação, p. 80). Assim, se uma máxima é correta para mim, ela deve ser correta para qualquer outra pessoa. 
          Duas outras idéias estão ainda presentes no imperativo categórico: o princípio da autonomia chamado por ele “o princípio supremo da moralidade” e a de reino dos fins. Quanto à autonomia, uma vontade é autônoma quando ela se dá a si mesma sua própria lei e não depende de qualquer desejo ou inclinação exterior à razão. Compreendemos então que a lei da moral não é uma lei arbitrariamente inventada, mas que ela é instituída pela razão por motivos puramente racionais e aí não pode interferir qualquer outro motivo que fuja à razão. A lei que me serve como guia deve ser a mesma que serve como guia para todo outro ser racional autônomo.
          Quanto ao reino dos fins, todos os seres racionais são fins em si mesmos e se todos agirem racionalmente constituirão uma sociedade idealmente harmônica. Assim, embora cada um possa ter seus fins individuais, estes não devem interferir nos fins dos outros. A universalidade da máxima visa então ordenar os fins de tal modo que o mundo esteja em conformidade com todas as leis morais. Esse seria o mundo moral idealizado por Kant. 



3. Críticas à Ética Kantiana

          Há várias críticas à ética kantiana que a tomam em suas limitações em vários níveis. Limito-me aqui a algumas delas. A crítica clássica diz que seus princípios gerais são abstratos e genéricos e que ajudam pouco em situações concretas do cotidiano quando se tem de levar em consideração situações complexas de indivíduos e coletividades. Por serem abstrações universais e necessárias, as máximas kantianas podem se tornar vazias em sua aplicabilidade histórica. São facilmente aceitáveis do ponto de vista lógico, mas pouco efetivas no nível prático.
          As  formulações  kantianas  giram  todas  em  torno  de  um  sujeito  denominado  por  ele transcendental  de  caráter  exclusivamente  racional. A consciência moral  desse sujeito transcendental  é  o  único  critério  de  validação  dos  princípios  universais,  estando  a pessoa do outro ausente dos procedimentos pelos quais a consciência constrói suas leis universais. O fundamento da ética fica assim reduzido ao sujeito, faltando o consenso de um diálogo em que o outro possa participar na construção dos princípios e máximas. Os filósofos contemporâneos, Habermas e Apel, pretendem corrigir a Kant neste aspecto, propondo  o  diálogo  intersubjetivo  como  meio  de  superar  o  solipsismo  do  sujeito transcendental que decide subjetivamente e a sós a aplicabilidade das leis universais. Para  eles,  o  outro  é  um  interlocutor  que  deve  ser  parte  integrante  na  busca  de  um consenso na determinação do que é justo e bom. As normas éticas devem ser decididas no diálogo intersubjetivo.  
          Ainda  o  filósofo  franco-lituano  Emmanuel  Levinas,  apesar  de  próximo  da  ética kantiana, critica-a, no entanto, em vários aspectos. Para Levinas, é o encontro com a pessoa singular do outro a ocasião que desperta o homem para a consciência de sua própria  dignidade.  Por  isso,  é  o  outro  que  se  apresenta  como  um  imperativo  moral, exigindo de mim responsabilidade por ele. Se o imperativo moral kantiano é um fato da razão, para Levinas a ‘voz da consciência ética’ excede as capacidades e os poderes da consciência. A consciência é colocada em questão por outrem, o que seria impossível dentro da razão autônoma kantiana capaz de dar a si mesma suas leis. Além do mais, Levinas pensa que a resposta ética dada por cada sujeito em cada situação específica é única e não alcança nunca a universalidade. Ela é ditada pela situação concreta em que outrem apela e inquieta o eu. Levinas se opõe ainda à idéia kantiana de respeito pela idéia  de  humanidade  presente  numa  pessoa,  preferindo  falar  do  respeito  à  pessoa singular que tem um nome e um rosto singulares. Ele se pergunta se a universalidade kantiana não pode ser justamente um empecilho nesse encontro com a pessoa única e insubstituível de cada um. Ainda Levinas critica o fato de a lei moral kantiana ser obra exclusiva  da  razão  prática.  Neste  caso,  o  amor  só  ganharia  valor  moral  quando submetido à razão. Para Levinas, a lei moral - tal como Kant a entende - só produz respeito o qual nasce da submissão à lei presente em si mesmo, libertando o homem de um apego patológico a si mesmo. Para Levinas, é a sensibilidade ao outro que desperta no  sujeito  o  amor  por  outrem.  Com  isso,  diferentemente  de  Kant,  Levinas  dá  valor moral à sensibilidade.

Sobre o autor:
Prof. Dr. Ozanan Carrara,
Professor Adjunto do Departamento Interdisciplinar da
Universidade Federal Fluminense, Polo Universitário de Volta Redonda-RJ.

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Acesse: Parte I - Parte II
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Bibliografia

  • BORGES, Maria de Lourdes e outros. O que você precisa saber sobre ética. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.
  • KANT, Immanuel.  Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, sdp.
  • OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Ed. Loyola, 1993.
  • PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • WALKER, Ralph. Kant. (Tradução de Oswaldo Giacóia Junior). São Paulo: Ed. Unesp, 1999.

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte II)



2. A Ética das Normas


          As obras kantianas que tratam do problema moral são basicamente três: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1797). Todas elas consideram o homem como agente livre e racional em seu agir moral. No domínio da razão prática é que somos livres e, portanto, morais já que não se pode falar de comportamento moral na ausência de liberdade. Para Kant, o fundamento da ética é estritamente racional e assim universal, não sendo as normas morais nem de caráter pessoal ou subjetivo nem são construções de uma cultura em particular. A própria racionalidade humana dá ao homem os princípios éticos que são nada mais que leis universais que indicam seus deveres e obrigações. Daí a ética kantiana ser de natureza prescritiva e ter ficado conhecida como ética das normas.

Immanuel Kant.

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte I)



1. Contexto Histórico


          O contexto em que o filósofo alemão, Immanuel Kant, formula sua ética é o século XVIII, conhecido como o século das luzes ou como Esclarecimento, quando o pensamento europeu procurou superar a visão teocêntrica que perdurou por toda a Idade Média uma vez que os valores religiosos impregnavam todas as concepções éticas e a fé fornecia os critérios do bem e do mal. No contexto cristão medieval, homem moral era sinônimo de homem temente a Deus. O século XVIII, com sua inabalável confiança nos poderes da razão humana e na autonomia do homem racional, aposta todas as suas fichas na “luz natural da razão” como a única arma capaz de libertar o homem do domínio da ignorância e da superstição. As armas do homem iluminista são o conhecimento, a ciência e a educação que são capazes de libertá-lo das trevas e do obscurantismo que tornaram o homem impotente diante de determinados modelos religiosos, sociais e políticos que lhe tiravam toda autonomia, submetendo-o aos preconceitos, ao fanatismo, à tutela do Estado e dos poderes políticos e religiosos que decidiam em seu lugar. Trata-se agora de desenvolver a consciência individual, formando o homem autônomo em sua capacidade de conhecer o real já que todos os homens são igualmente dotados da “luz natural da razão”. Podemos ver ainda no Iluminismo a retomada do projeto pedagógico do Renascimento que coloca o homem no centro de todas as preocupações religiosas, políticas e sociais.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Filósofos Morais: Sócrates


          Sócrates, com seu foco na figura humana, inaugura a ética e abre o espaço para o desenvolvimento de toda a filosofia ocidental. Com sua constante refutação e ironia levava ao parto das ideias - a maiêutica, em homenagem a sua mãe parteira -, pelo hábito de questionamento despertou muitos sobre as necessidade de se repensar e quebrar determinados equívocos e paradigmas mal-resolvidos, anteriores a uma reflexão. O hábito de questionar desde os mais letrados e relevantes homens da Pólis até os jovens e homens simples revelando o estado de ignorância em que se encontravam provocou reações tanto positivas quanto negativas na cidade ateniense; hábito este que indubitavelmente alterou toda a história ocidental dando de presente a humanidade não só ideias estanques e discípulos que desenvolveram e/ou reforçaram sua filosofia, mas uma completa base para o conhecimento e modo como conhecer, reverberando desde a política, a ciência e a moral.
          Tratando o problema ético como um problema de conhecimento, buscava esclarecer os transeuntes da cidade por um confronto de perguntas que ironicamente levavam esses pedestres ao reconhecimento de sua ignorância frente à ideias relacionadas e mesmo essenciais a vida sócio-política, tão cara ao ideal grego. O confronto dialético em Sócrates é uma questão de diálogo. Contudo, todo este posicionamento de Sócrates em relação ao homem e sua postura ética é somente posterior à visão de tal filósofo em relação ao homem e a descoberta de sua essência; essência esta fundada na alma.

"Com Sócrates a filosofia alcançou um novo momento originário e inaugural: pela primeira vez o homem tornou-se tema da discussão filosófica. Este será o único assunto de Sócrates, inesgotável capítulo central de todas as teorias filosóficas posteriores.
Nas conversas e discursos, nas ruas e praças de Atenas, Sócrates insistia na necessidade de restaurar a imagem do homem, que deveria volta à sua interioridade, 'conhecer a si mesmo', e recuperar seu valor e dignidade moral. Esta é a base para que tenhamos um bom cidadão numa polis justa. Portanto, a ética nasce com os temas centrais, nunca esgotados, do bem, da virtude, do valor da pessoa e da sociedade justa.
Portanto, esse discurso não nasceu de uma genial intuição do sábio que medita em seu gabinete ou na montanha. Nasceu de um contexto sociopolítico em decadência vertiginosa. A ética nasceu nas praças, na análise dos fatos negativos que Sócrates via e vivia. [...]
Sócrates maduro lamentava o declínio do esplendor de Atenas, as lutas políticas marcadas exílio de Alcebíades, até a instauração do regime oligárquico dos Trinta Tiranos no ano de 404 a.C."
Olinto Pegoraro
Ética dos maiores mestres através da história.


"A democracia ateniense assegurava aos cidadãos o exercício da função legislativa: integrantes da Ekklesia (assembléia popular), podiam e deviam participar da elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da cidade. Mas o regime democrático impunha também aos cidadãos a obrigação de defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condição de membros das cortes populares, assumiam o compromisso — através do juramento heliástico — de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para a cidade-Estado e seu povo.
No ano 399 a.C, o tribunal dos heliastas, constituído por cidadãos provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-se com 500 ou 501 membros. Difícil tarefa aguardava esses juízes: julgar Sócrates, conhecida mas controvertida figura. Cidadão admirado e enaltecido por alguns — particularmente pelos jovens —, era, entretanto, criticado e combatido por outros, que nele viam uma ameaça para as tradições da polis e um elemento pernicioso à juventude. Indiscutível era seu destemor, de que já dera provas em tempos de guerra, como notória sua independência pessoal, manifestada não apenas em seu modo peculiar e inconvencional de viver, mas também em circunstâncias especiais — como quando se negou à conivência com sórdida trama política urdida pelos Trinta Tiranos que durante algum tempo haviam dominado Atenas. Mas o que sobretudo o caracterizava era a atividade a que vinha se dedicando há anos e que justamente suscitava o deleite e a admiração dos jovens, enquanto noutros despertava ressentimentos: conversar. Despreocupado com os bens materiais — cujo acúmulo era o objetivo da maioria —, usufruindo os prazeres sem se atormentar em viver à sua cata, mas também sem deles fugir em exageros ascetas, Sócrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua missão — a missão que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um 'vagabundo loquaz': dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a fazê-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as habilidades que lhes eram atribuídos. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a emitir opiniões referentes à sua própria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questões habilmente formuladas por Sócrates — que alegava que 'apenas sabia que nada sabia' — era, com freqüência, tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados à prova, muitos supostos talentos e muitas reputações de sapiência revelavam-se infundados e muitas idéias vigentes e consagradas pela tradição manifestavam seu caráter preconceituoso e sua condição de meros hábitos mentais ou simples construções verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorância da própria ignorância: situação que, não sendo ultrapassada, prenderia a alma num estéril engano e, o que era mais trágico ainda, deixá-la-ia distante de si mesma, apartada de sua própria realidade. Para alguns — os que aceitavam submeter-se à fase construtiva da dialogação socrática —, aquele reconhecimento da ignorância do justo significado das palavras representava a oportunidade de um verdadeiro renascimento: o renascer na consciência de si mesmo, condição preliminar para a tomada de posse da própria alma. Para outros, porém, era o esboroar do prestígio em plena praça pública. Ou então era a instauração de questões e dúvidas ali onde há séculos perdurava a cega certeza dos preconceitos e das crendices: no campo dos valores morais e religiosos, que orientavam a conduta dos indivíduos mas também serviam de alicerces às instituições políticas."
Coleção "Os Pensadores" - Sócrates
Editora Nova Cultural, 1987.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Michael Sandel: A Arte Esquecida do Debate Democrático

          Utilizando da filosofia ética aristotélica, Michael Sandel explora a relação entre justiça, democracia e justiça através de um processo jurídico levado à Suprema Corte de Justiça americana. A questão do thelos (propósito, fim) de cada conduta e a divisão de opiniões em relação ao justo e injusto abre espaço pra repensarmos o papel da democracia e da justiça em nossas vidas e sua abrangência social e política.



"A democracia prospera com o debate cívico, é o que diz Michael Sandel - mas, vergonhosamente, perdemos essa prática. Ele conduz um divertido exercício, como participantes do TED discutindo sobre um caso recente da Suprema Corte (PGA Tour, Inc. vs. Martin) cujo resultado revela o ingrediente crítico da justiça."
 *Vídeo traduzido por Durval Castro e revisto por Eduardo Carvalho.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Sófocles: o mito "Antígona"

          O significado de Antígona para o estudante de direito e das ciências sociais, mas também para o cidadão em geral, se revela na tensão política entre poder constituído e o ideal ético. Antígona, filha de Édipo - homem condenado por si próprio a uma maldição de miséria em vida - é de certo modo herdeira e subjugada ao infortúnio do pai, antigo governante de Tebas. Sua história centrada na tragédia grega de Sófocles é explicitada após o fato de perder ambos os irmãos em uma guerra na qual eram inimigos e ver-se impedida de sepultar o perdedor. Creonte, irmão de Jocasta - mãe e avó de Antígona, Ismênia, Eteócles e Policine - assume o poder de Tebas após o exílio de Édipo, a morte de sua irmã e de seus sobrinhos homens em uma guerra civil onde disputavam o poder herdado do pai. Como Creonte demonstrava simpatia por Eteócles, impediu através de um decreto o funeral de Policine. Antígona, contrariada sepulta o irmão.
          Entra neste momento o dilema do poder e da lei versus o ideal de justiça. A tragédia grega com sua função educacional chamava a atenção do cidadão grego (o  indivíduo do sexo masculino nascido na Pólis) e do restante dos habitantes (ressalta-se, a maioria) para situá-lo em relação ao seu mundo, a Pólis, de acordo com valores cívicos e éticos. Aquilo que fosse de caráter público deveria ser pensado, e colocado em consonância com os ditames do justo e cívico, ideais que conviviam estritamente juntos no ideal grego. A sociedade grega, com sua postura democrática necessitava incutir no habitante da cidade a sua função como ser que ali vive e que participa do organismo social. Antígona, ao desobedecer o decreto parcial de Creonte, assume este estigma do indivíduo que usa do ideal ético-cívico grego; age de acordo com o amplamente aceito, o cultural que forma essencialmente sua sociedade - a justiça que sobrepaira qualquer parcialidade humana, que é ditada pelos deuses, seres superiores; justiça esta que civicamente deve ser defendida, explicitada.
          A representação do decreto e da parcialidade de Creonte pelo Direito Positivo e o ato de Antígona como digno de representação do Direito Natural encaixam-se perfeitamente como caso concreto na frase de Caio Mário da S. Pereira que sintetiza a questão da tensão entre estas duas faces do Direito. Citando-a novamente: "se alguma vez, sob o império de forças antijurídicas, declina o sentimento do justo, a humanidade supera a crise e retoma o seu caminho, procurando sempre o ideal de justiça, que se radica indefectivelmente na consciência humana". Pena seja que mesmo depois do reconhecimento por Creonte de seu erro frente a opinião geral, a protagonista já havia matado a si própria levando a desgraça também à família do governante.


Teatro de Dionísio
"Para os gregos, o homem é um ser feito para a vida política, para a Pólis e o papel da ética e da política era regular os excessos para possibilitar a convivência e o homem poder ascender à condição de homem virtuoso.
O teatro, especialmente a tragédia, teve um papel fundamental na construção de uma ética dos cidadãos gregos à medida que propiciava, pela via da retórica, a revelação e a perlaboração das paixões.
Era esse lugar para ver, para mostrar essa condição de pathos no humano. Todos assistiam ao teatro - homens, mulheres, crianças e escravos. O valor ético da tragédia aparecia com tal vigor que ela era, acima de tudo, instrumento de conduta moral independentemente do lugar que cada um ocupava na organização social da cidade.
É importante lembrar que o gênero trágico surgiu no fim do Século VI, quando a linguagem do mito deixava de apreender a realidade política da cidade e marchava para a formação do cidadão grego, para a formação do pensamento social, para o advento do direito. Assim, a encenação das tragédias contribuía para uma educação permanente do cidadão grego, reforçando e revigorando o civismo."
Edilene Freire Queiroz
Do pathos do teatro grego à paixão da contemporaneidade,
Revista SymposiuM - Unicap.



  • Direito Positivo
"Conjunto de princípios que pautam a vida social de determinado povo em determinada época. [...] Não importa seja escrito ou não escrito, de elaboração sistemática ou de formação jurisprudencial. O direito positivo, segundo a tese de Capitant, é o que está em vigor num povo determinado, e compreende toda a disciplina da conduta, abrangendo as leis votadas pelo poder competente, os regulamentos, as disposições normativas de qualquer espécie. Ligado ao conceito de vigência, o direito positivo fixa nessa o fundamento de sua existência. Por isso é contingente e variável."
Caio Mário da Silva Pereira,
Instituições de Direito Civil - Vol. I, 24ª Edição.



  • Direito Natural
"Ulpiano define-o: 'ius naturale, est quod natura omnia animalia docuit' (direito natural é o que a própria natureza ensina a todos os homens), projetando desta forma a noção, de ius, que é a própria sociedade humana, às relações instintivas dos irracionais.
Fixando-se, porém, o jurista na órbita do direito em si, é forçado a reconhecer que acima do direito positivo, e sobre este influindo no propósito de realizar o ideal de justiça, ditado por uma concepção de superlegalidade, o direito natural sobrepaira à norma legislativa, e, com este sentido, é universal e eterno, integrando a normação ética da vida humana, em todos os tempos e em todos os lugares. Se alguma vez, sob o império de forças antijurídicas, declina o sentimento do justo, a humanidade supera a crise e retoma o seu caminho, procurando sempre o ideal de justiça, que se radica indefectivelmente na consciência humana."
Caio Mário da Silva Pereira,
Instituições de Direito Civil - Vol. I, 24ª Edição.



Vídeo: "Antígona" de Sófocles


"Creonte [Príncipe de Tebas]: Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizestes?
Antígona: Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte: E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígona: Sim, porque não foi Júpiter (Zeus) que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita coma as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que tenha teu édito força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram! - Tais decretos, eu, que não temo o poder do homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses!"
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"Creonte: Quem é rigoroso na decisão de seus casos domésticos, será justo também no governo do Estado. Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecerá meus encômios. O homem que a cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo, quer seus atos pareçam justos, quer não.
Hémon [Filho de Creonte]: Meu pai, ao dotar os homens da razão, os deuses concederam-lhes a mais preciosa dádiva que se pode imaginar. Será, por acaso, certo tudo que acabas de dizer? Eu não sei... e praza aos deuses que não saiba nunca. No entanto, outros há, que podem ter outras ideias. De qualquer forma, é no teu interesse que me julgo no dever de examinar o que se diz, o que se faz, e as críticas que circulam. Teu semblante inspira temor ao homem do povo, quando este se vê forçado a dizer o que não te é agradável ouvir. Quanto a mim, ao contrário, posso observar, às ocultas, como a cidade inteira deplora o sacrifício dessa jovem; e como, na opinião de todas as mulheres, ela não merece a morte por ter praticado uma ação gloriosa... Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos, ou pelas aves carniceiras. [...] Mas não creias que só tuas decisões sejam acertadas e justas... Todos quantos pensam que só eles têm inteligência, e o dom da palavra, e um espírito superior, ah! esses, quando de perto os examinamos, mostrar-se-ão inteiramente vazios! Por muito sábios que nos julguemos, não há desar em aprender ainda mais, e em não persistir em juízos errôneos... [...] Cede, pois, no teu íntimo, e revoga teu édito. Se, apesar de minha idade, me é lícito emitir um parecer, direi que o homem que possuir toda a prudência possível, deve levar vantagem aos outros; mas como tal virtude nunca se encontra, manda o bom senso que aproveitemos os conselhos dos demais.
O Corifeu [Líder do Coro]: Príncipe, visto que ele propõe medidas de moderação e prudência, convém ouvi-lo; de parte que nos falaste muito bem!
Creonte: Terei eu então de honrar a quem se mostrou rebelde?
Hémon: Nunca proporei que se respeite a quem houver praticado o mal.
Creonte: E por acaso não foi um crime o que ela fez?
Hémon: Não é assim que pensa o povo de Tebas. 
Creonte: Com que então cabe à cidade impor-me as leis que devo promulgar? [...] É em nome de outrem que estou governando neste país?
Hémon: Ouve: não há Estado algum que pertença a um único homem!
Creonte: Miserável! Por que te mostras em desacordo com teu pai?
Hémon: Porque te vejo renegar os ditames da Justiça!
Creonte: Por acaso eu a ofendo, sustentando minha autoridade?
Hémon: Mas tu não a sustentas calcando aos pés os preceitos que emanam do deuses!"
Sófocles
Antígona, Tradução: J. B. de Mello e Souza.
Disponível em eBooksBrasil: www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf.