sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte II)



2. A Ética das Normas


          As obras kantianas que tratam do problema moral são basicamente três: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1797). Todas elas consideram o homem como agente livre e racional em seu agir moral. No domínio da razão prática é que somos livres e, portanto, morais já que não se pode falar de comportamento moral na ausência de liberdade. Para Kant, o fundamento da ética é estritamente racional e assim universal, não sendo as normas morais nem de caráter pessoal ou subjetivo nem são construções de uma cultura em particular. A própria racionalidade humana dá ao homem os princípios éticos que são nada mais que leis universais que indicam seus deveres e obrigações. Daí a ética kantiana ser de natureza prescritiva e ter ficado conhecida como ética das normas.

Immanuel Kant.
          Se as ciências naturais buscam identificar a causa dos fenômenos, a ética compreende o homem como um ser livre e racional cujo agir moral não se explica segundo leis causais, mas segundo princípios indicados por sua própria razão. O mundo da moral, portanto, se distingue radicalmente do mundo da natureza cujos fenômenos se submetem a leis precisas e imutáveis. No mundo moral, o homem se define pela lei da liberdade.
          A moral iluminista procura três formas de justificação para a norma moral: a lei natural (é o caso dos jusnaturalistas), o interesse ( é o caso dos utilitaristas que justificam o comportamento moral como busca do prazer e forma de evitar a dor que Kant vai combater firmemente) e a própria razão (posição kantiana). 
          Em sua ética das normas, Kant busca estabelecer os princípios a priori da moral. No vocabulário kantiano, a priori significa não aquilo que é conhecido por nós através da experiência, mas aquilo que nos é dado pela razão, aquilo que é anterior ou independente da experiência. Dizer que a lei moral é a priori significa dizer que a razão nos obriga a agir ou a deixar de agir simplesmente porque uma ação é exigida pela lei ou proibida por ela. A lei moral se apresenta assim como um ‘imperativo categórico’, isto é, uma imposição feita pela razão à vontade para que ela aja segundo as exigências do dever e da obrigação. Para os medievais, era a lei moral provinda de Deus que indicava aos homens as normas objetivas do agir moral. Para os antigos, as normas morais tinham um fim como, no caso de Aristóteles, a felicidade ou o bem-estar geral da sociedade. Para Kant, isso é permanecer ainda na heteronomia moral, isto é, a vontade é comandada por algo exterior a ela, seja a vontade de Deus (medievais), seja a busca da felicidade (Aristóteles). Mas Kant rejeita ainda a idéia de que haja um tipo de sentimento moral no homem, o que tiraria da moral seu caráter puramente racional.
          O fundamento da moral kantiana é então a autonomia da vontade (liberdade). Só uma vontade livre e autolegislativa pode conferir a si mesma a norma do agir moral. Há aqui uma diferença fundamental com relação aos antigos e medievais. De fato, em Aristóteles e Tomás de Aquino, a vontade é irracional e por isso ela deve se submeter à razão que a comanda. Kant discorda ao propor que a vontade é racional, isto é, ela é sempre boa, é a razão pura prática responsável por todo agir moral. O homem, diferentemente dos animais, não está subordinado às leis da natureza sensível e, por isso, ele pode transcendê-las, isto é, libertar-se das exigências da sensibilidade, agindo segundo as exigências da razão. Ao deixar-se comandar pela razão, ele se torna senhor de si, legislador de si mesmo e de sua vontade, agindo independentemente das determinações empíricas que advêm de sua natureza sensível. Vê-se logo que há aqui um rompimento com o sistema metafísico greco-medieval, tendo a ética de responder à questão crucial: como conciliar liberdade de um lado e a necessidade que a limita, de outro lado? O papel da razão é então manifestar a lei moral.
          Kant revoluciona a ética ao caracterizar a norma moral como um “imperativo categórico” que determina o agir moral do indivíduo consciente e livre. Se a lei moral é a priori, ela tem valor por si mesma. Seu valor não provém do fato de ela promover a felicidade ou o bem-estar, nem do fato de evitar a punição divina ou ainda de evitar a dor e o sofrimento, pois a moral é desinteressada e o agir moral é gratuito. Por isso, a lei moral é categórica ou se apresenta na forma de um imperativo categórico. Diz Kant: Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética – ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. (Fundamentação da Metafísica dos costumes, Edições 70, p. 50).
          Imperativos aqui são ordens da razão já que a lei moral sempre se apresenta como um dever ou uma obrigação. E a razão para que a lei moral se apresente sempre como um dever é que a vontade corre sempre o risco de desvio por não sermos espontaneamente morais.  Kant  introduz  aqui  a  noção  de  mal  radical. Por  ser  finito,  o  homem  oscila constantemente  entre  as  exigências  de  sua  natureza sensível,  isto  é,  do  prazer  e  da satisfação sensível e as exigências que procedem da razão ou do dever moral. Só o Ser infinito que é razão plena e total está livre desse conflito. Para resistir às exigências da sensibilidade,  o  homem  precisa  de  uma  norma  moral  que  se  apresente  como  um imperativo.  Trata-se  então  de  um  imperativo  categórico,  isto  é,  de  uma  ação  que  é racional não como meio racional para algum fim desejado sem nenhuma consideração a respeito  da  racionalidade  desse  fim  (neste  caso,  tratar-se-ia  de  um  imperativo hipotético), mas de uma ação racional por direito próprio independente de ela conduzir a um fim desejado pelo agente. Kant diz que os utilitaristas usam apenas o imperativo hipotético, pois se preocupam apenas com o ‘como’ alcançar uma meta perseguida. Por exemplo, um utilitarista consideraria que a melhor maneira de poupar dinheiro é investir em ações na bolsa. Há aqui apenas a preocupação com o modo como se pode poupar dinheiro, mas não é o poupar dinheiro uma maneira necessária de agir, pois posso não querer poupar dinheiro. Entretanto, a lei moral exige de nós perseguir aqueles fins que são também deveres. Para Kant, algumas ações são obrigatórias simplesmente porque a razão  assim as  ordena.   Um  imperativo  categórico  nos  declara  o  que é  racional  por direito próprio.
          Daí Kant ter estabelecido que temos de tratar seres racionais ou os seres humanos como “fins em si mesmos”. Diz ele: O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. (Fundamentação, Edições 70, p. 68).
          Daí Kant ter formulado o imperativo categórico da humanidade como fim em si mesma da seguinte forma: Age de  tal  maneira  que  uses  a  humanidade,  tanto  na tua  pessoa como  na  pessoa  de  qualquer  outro,  sempre  e  simultaneamente  como  fim  e  nunca simplesmente como meio (Ibidem, p. 69). 
          O termo ‘fim’ aqui designa coisas que pretendemos realizar, mas ele diz que há também fins que são deveres como buscar a perfeição própria e a felicidade dos outros. Kant proíbe ter como fim algo que conflite com o dever de promover sua própria perfeição ou a  felicidade  de  outrem. Isso  significa  que  ninguém pode  ter  como  objetivo  explorar outras  pessoas  ou  interferir  na  liberdade  dos  outros  já  que  eu  também  necessito  da liberdade para meu próprio desenvolvimento.   
          Antes  de  prosseguir,  faz-se  necessário  esclarecer  que  a  sensibilidade,  pelo  fato  de resistir às ordens da razão, não é má em si mesma. É próprio dela exigir satisfação e nisso  ela  segue  as  leis  da  sua  própria  natureza.  Mal  seria  agir  sempre  segundo  as exigências  da  sensibilidade, cedendo  a  todos  os  desejos.  Um  ser  humano  que  assim procedesse cederia ao egoísmo e renunciaria à sua condição de ser racional e moral. Por outro lado, não se trata de submeter a sensibilidade à razão, como se as duas fossem conciliáveis. Aristóteles tenta conciliar sensibilidade e razão, fazendo a última dominar a primeira. Kant manda libertar-se das inclinações empíricas, aderindo à lei do dever.
          Mas como Kant entende a vontade? Se ela é irracional como em Aristóteles e Tomás de Aquino, ela deve se submeter à razão. Para Kant, no entanto, a vontade é sempre boa como  ele  afirma  no  início  da  Primeira  Seção  da Fundamentação  da  Metafísica  dos costumes (p. 21). A  vontade aqui não é  boa  por causa do  que ela realiza  ou de sua aptidão para alcançar algum fim proposto, mas porque seu querer é bom em si mesmo. A boa vontade tem “seu pleno valor em si mesma”. A lei moral é, portanto, a lei de uma vontade boa e livre. A boa vontade inclui o conceito de dever moral. Por isso, é boa a vontade  que  age  por  puro  respeito  ao  dever  e  por  nenhuma  outra  razão  que  não  o cumprimento puro do dever. 


  • A universalidade da lei moral
          Se  o  imperativo  categórico  obriga  a  vontade  a conformar-se ao dever, ele determina também que a máxima que guia minha ação seja sempre universalizável. A  lei moral  que  obriga irrestritamente porque é necessária é também universal. Kant assim o formula: age unicamente segundo a máxima que te leve a querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal. Se as máximas são princípios subjetivos que orientam a ação de qualquer pessoa razoável, elas alcançam o estatuto de leis  práticas  objetivas.  Isso  significa  que  uma  lei  moral  deve  ser  válida  para  toda  a natureza humana, isto é, o que o imperativo prescreve para um indivíduo deve se tornar uma regra válida para todo ser humano.

  • A questão da liberdade
          Kant distingue dois tipos de leis: as leis da natureza e as leis da liberdade que são aquelas que dizem o que deve ser. Para ele, a moral ocidental não levou em conta essa distinção e por isso não compreendeu a especificidade da moral. Kant recusa outras tentativas de fundamentar o ético como aquela que o fundamenta no princípio da autoconservação. Definir o homem como alguém que busca apenas se auto-conservar é defini-lo a partir do egoísmo. Neste caso, caberia à sociedade apenas administrar a luta dos egoísmos uns contra os outros. Esta posição aproxima a ética do modelo biológico em que as espécies se caracterizam pelo instinto da sobrevivência e de expansão das próprias forças vitais. O homem moral não se define pelas leis da natureza, mas pela liberdade que é “condição universal de possibilidade de ações dotadas de sentido”. Por outro lado, não há liberdade quando há formas exteriores de coação. Sendo racional, o homem não tem seu caminho já determinado, mas ele pode se autodeterminar. Moralidade significa então a capacidade do homem de se auto-emancipar em sua humanidade. Em primeiro lugar, a noção kantiana de liberdade significa independência do mundo sensível, isto é, capacidade de se libertar da causalidade natural e do jugo da temporalidade (conexão necessária de fenômenos) como forças distintas do sujeito. O homem está para além de qualquer determinação causal-temporal. Logo, a liberdade aqui se entende tanto como independência em relação à causalidade sensível como com relação ao tempo, à determinação histórica. Liberdade significa então autodeterminação.
          Portanto,  nessa  perspectiva,  uma  vontade  livre  é aquela  que  é  lei  para si  mesma.  O homem livre é aquele se determina supra-sensivelmente. A causa da ação humana aqui é única e exclusivamente a própria vontade livre e soberana. Ela significa capacidade de começar  por  si mesmo,  independente  do mundo  e  da  história.  Sendo  ahistórica  e atemporal, a liberdade é pura interioridade, espontaneidade pura. Só é moral uma ação livre.

Sobre o autor:
Prof. Dr. Ozanan Carrara,
Professor Adjunto do Departamento Interdisciplinar da
Universidade Federal Fluminense, Polo Universitário de Volta Redonda-RJ.

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Acesse: Parte I - Parte III
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Bibliografia
  • BORGES, Maria de Lourdes e outros. O que você precisa saber sobre ética. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.
  • KANT, Immanuel.  Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, sdp.
  • OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Ed. Loyola, 1993.
  • PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • WALKER, Ralph. Kant. (Tradução de Oswaldo Giacóia Junior). São Paulo: Ed. Unesp, 1999.