sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte III)



  • A Felicidade
          O homem é matéria e forma, isto é, enquanto matéria, ele busca satisfazer seus sentidos (comendo, bebendo, praticando lazer), mas também busca a satisfação do espírito (alegra-se através da atividade intelectual e dos sucessos sociais). Satisfazer tais necessidades é ser feliz. Poderia então a felicidade erigir-se como critério moral de modo que o que me faz feliz é também moral? Não!, ensina Kant, pois o problema da felicidade está em que ela atende apenas as condições individuais já que aquilo que me satisfaz pode não satisfazer o outro. Com isso, é impossível que a felicidade sirva de lei universal, não podendo assim tornar-se princípio de determinação moral. Só a lei moral transcende os sentidos, os fenômenos e a causalidade empírica e ela está no nível da razão. Sendo transcendente, a liberdade pode dar-se a si mesma sua lei e determina seus fins independente das exigências do mundo sensível. A consciência moral convoca então o homem de modo imperativo a superar sua natureza imperfeita, buscando seu verdadeiro ser que é o ser moral. Tornando-se moral, ele se torna senhor de si. Buscar a felicidade seria ainda agir por interesse e ação moral é desinteressada.

  • O Dever
          A moralidade é prescritiva. Isso significa que a ação moral traz consigo uma ação para agir e é neste sentido que ela é um imperativo categórico. Mesmo que eu aja contra a moralidade, não posso ignorar o fato de que ela dá a mim uma razão para agir, ela é o motivo para que eu aja. O valor de uma ação moral está em que ela se realiza por um senso de dever. Não se trata de simplesmente fazer o que se quer. Neste caso, a ação não teria nenhum valor moral.

          Kant distingue entre ações “em conformidade com o dever” e ações praticadas “por dever”. São estas últimas que mostram o mérito do agente, pois a ação conforme o dever não é feita em razão dele. A ação por dever é aquela que tem sua razão de ser no dever e não numa outra razão qualquer. Não se trata de ser frio e indiferente agindo unicamente por dever, sem amor e compaixão, mas sim que aquele que age por dever o faz por uma convicção própria. Agir movido por nossas paixões e emoções seria um agir mecânico negador da liberdade. Mas a compaixão pode perfeitamente ser um dever se eu o elejo como tal e ajo por causa dele. Para Kant, o que confere valor moral a uma ação é a máxima, ou seja, o princípio subjetivo segundo o qual o agente age. Deus, como ser finito e que possui uma vontade santa, não precisa de uma máxima que oriente sua ação, mas nós, seres finitos cujos desejos podem se desviar do dever, precisamos de uma norma para agir. Assim, uma ação praticada por dever afasta totalmente a possibilidade de agir por inclinação ou por qualquer outro objeto que determinasse a vontade, “exceto objetivamente a lei e subjetivamente o puro respeito por essa lei prática...”. Respeito aqui significa “a consciência da subordinação de minha vontade a uma lei, sem intervenção de outras influências sobre a minha sensibilidade” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes). Agir movido por um sentimento seria ainda permanecer no nível da natureza sensível. O respeito é “o efeito da lei sobre o sujeito e não sua causa”. Trata-se aqui de ter consciência racional a respeito da lei objetiva que me motiva a agir. O motivo da ação moral tem de ser livre de toda condição sensível.
          Já a ação conforme o dever não possui nenhum mérito por parte do agente, pois neste caso ele estará apenas fazendo uma ação lícita, por inclinação apenas, isto é, ele é legal ao conformar sua ação ao conteúdo da lei. Vê-se então uma diferença importante, na ética kantiana, entre legalidade e moralidade. A vida política, por exemplo, exige apenas a ação conforme o dever.

  • O Imperativo Categórico
          Dizer que a lei moral é racional significa dizer que ela é conhecida a priori, isto é, não é aprendida da experiência. Kant formula o imperativo categórico assim: age unicamente segundo uma máxima tal que ao mesmo tempo possas querer que ela se torne uma lei universal. Isso significa que a máxima subjetiva deve se conformar à lei universal. A universalidade aqui é uma exigência da razão e não significa apenas que ela se aplica a todos os seres humanos, mas também que ela exige de nós tratar igualmente casos iguais. Um exemplo dado pelo próprio Kant nos ajuda a entender essa característica da lei moral. Alguém precisa de dinheiro por se encontrar numa situação difícil e decide tomá-lo emprestado mesmo que tenha a intenção de não devolvê-lo. Isso exigiria deste indivíduo formular seu princípio da seguinte maneira: toda vez que precisar de dinheiro, devo tomá-lo emprestado mesmo que saiba que não poderei pagá-lo. Isso exigiria que cada um pudesse agir segundo essa mesma máxima pois, segundo o imperativo, eu devo “agir unicamente segundo aquela máxima que eu posso ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”. Neste caso, por ser impossível racionalmente universalizarmos a falsa promessa como a do exemplo acima, esta ação está contra a moralidade. Eu não posso querer uma falsa promessa como lei universal, pois isso destruiria a credibilidade de qualquer promessa.

          Para tornar mais clara a formulação do imperativo categórico, Kant ainda oferece dela uma segunda versão como a que segue: age como se a máxima de tua ação devesse se tornar por tua vontade uma lei universal da natureza (Cf. Fundamentação, p. 80). Assim, se uma máxima é correta para mim, ela deve ser correta para qualquer outra pessoa. 
          Duas outras idéias estão ainda presentes no imperativo categórico: o princípio da autonomia chamado por ele “o princípio supremo da moralidade” e a de reino dos fins. Quanto à autonomia, uma vontade é autônoma quando ela se dá a si mesma sua própria lei e não depende de qualquer desejo ou inclinação exterior à razão. Compreendemos então que a lei da moral não é uma lei arbitrariamente inventada, mas que ela é instituída pela razão por motivos puramente racionais e aí não pode interferir qualquer outro motivo que fuja à razão. A lei que me serve como guia deve ser a mesma que serve como guia para todo outro ser racional autônomo.
          Quanto ao reino dos fins, todos os seres racionais são fins em si mesmos e se todos agirem racionalmente constituirão uma sociedade idealmente harmônica. Assim, embora cada um possa ter seus fins individuais, estes não devem interferir nos fins dos outros. A universalidade da máxima visa então ordenar os fins de tal modo que o mundo esteja em conformidade com todas as leis morais. Esse seria o mundo moral idealizado por Kant. 



3. Críticas à Ética Kantiana

          Há várias críticas à ética kantiana que a tomam em suas limitações em vários níveis. Limito-me aqui a algumas delas. A crítica clássica diz que seus princípios gerais são abstratos e genéricos e que ajudam pouco em situações concretas do cotidiano quando se tem de levar em consideração situações complexas de indivíduos e coletividades. Por serem abstrações universais e necessárias, as máximas kantianas podem se tornar vazias em sua aplicabilidade histórica. São facilmente aceitáveis do ponto de vista lógico, mas pouco efetivas no nível prático.
          As  formulações  kantianas  giram  todas  em  torno  de  um  sujeito  denominado  por  ele transcendental  de  caráter  exclusivamente  racional. A consciência moral  desse sujeito transcendental  é  o  único  critério  de  validação  dos  princípios  universais,  estando  a pessoa do outro ausente dos procedimentos pelos quais a consciência constrói suas leis universais. O fundamento da ética fica assim reduzido ao sujeito, faltando o consenso de um diálogo em que o outro possa participar na construção dos princípios e máximas. Os filósofos contemporâneos, Habermas e Apel, pretendem corrigir a Kant neste aspecto, propondo  o  diálogo  intersubjetivo  como  meio  de  superar  o  solipsismo  do  sujeito transcendental que decide subjetivamente e a sós a aplicabilidade das leis universais. Para  eles,  o  outro  é  um  interlocutor  que  deve  ser  parte  integrante  na  busca  de  um consenso na determinação do que é justo e bom. As normas éticas devem ser decididas no diálogo intersubjetivo.  
          Ainda  o  filósofo  franco-lituano  Emmanuel  Levinas,  apesar  de  próximo  da  ética kantiana, critica-a, no entanto, em vários aspectos. Para Levinas, é o encontro com a pessoa singular do outro a ocasião que desperta o homem para a consciência de sua própria  dignidade.  Por  isso,  é  o  outro  que  se  apresenta  como  um  imperativo  moral, exigindo de mim responsabilidade por ele. Se o imperativo moral kantiano é um fato da razão, para Levinas a ‘voz da consciência ética’ excede as capacidades e os poderes da consciência. A consciência é colocada em questão por outrem, o que seria impossível dentro da razão autônoma kantiana capaz de dar a si mesma suas leis. Além do mais, Levinas pensa que a resposta ética dada por cada sujeito em cada situação específica é única e não alcança nunca a universalidade. Ela é ditada pela situação concreta em que outrem apela e inquieta o eu. Levinas se opõe ainda à idéia kantiana de respeito pela idéia  de  humanidade  presente  numa  pessoa,  preferindo  falar  do  respeito  à  pessoa singular que tem um nome e um rosto singulares. Ele se pergunta se a universalidade kantiana não pode ser justamente um empecilho nesse encontro com a pessoa única e insubstituível de cada um. Ainda Levinas critica o fato de a lei moral kantiana ser obra exclusiva  da  razão  prática.  Neste  caso,  o  amor  só  ganharia  valor  moral  quando submetido à razão. Para Levinas, a lei moral - tal como Kant a entende - só produz respeito o qual nasce da submissão à lei presente em si mesmo, libertando o homem de um apego patológico a si mesmo. Para Levinas, é a sensibilidade ao outro que desperta no  sujeito  o  amor  por  outrem.  Com  isso,  diferentemente  de  Kant,  Levinas  dá  valor moral à sensibilidade.

Sobre o autor:
Prof. Dr. Ozanan Carrara,
Professor Adjunto do Departamento Interdisciplinar da
Universidade Federal Fluminense, Polo Universitário de Volta Redonda-RJ.

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Acesse: Parte I - Parte II
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Bibliografia

  • BORGES, Maria de Lourdes e outros. O que você precisa saber sobre ética. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.
  • KANT, Immanuel.  Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, sdp.
  • OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Ed. Loyola, 1993.
  • PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • WALKER, Ralph. Kant. (Tradução de Oswaldo Giacóia Junior). São Paulo: Ed. Unesp, 1999.

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte II)



2. A Ética das Normas


          As obras kantianas que tratam do problema moral são basicamente três: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1797). Todas elas consideram o homem como agente livre e racional em seu agir moral. No domínio da razão prática é que somos livres e, portanto, morais já que não se pode falar de comportamento moral na ausência de liberdade. Para Kant, o fundamento da ética é estritamente racional e assim universal, não sendo as normas morais nem de caráter pessoal ou subjetivo nem são construções de uma cultura em particular. A própria racionalidade humana dá ao homem os princípios éticos que são nada mais que leis universais que indicam seus deveres e obrigações. Daí a ética kantiana ser de natureza prescritiva e ter ficado conhecida como ética das normas.

Immanuel Kant.

Ética em Immanuel Kant, por Ozanan Carrara (Parte I)



1. Contexto Histórico


          O contexto em que o filósofo alemão, Immanuel Kant, formula sua ética é o século XVIII, conhecido como o século das luzes ou como Esclarecimento, quando o pensamento europeu procurou superar a visão teocêntrica que perdurou por toda a Idade Média uma vez que os valores religiosos impregnavam todas as concepções éticas e a fé fornecia os critérios do bem e do mal. No contexto cristão medieval, homem moral era sinônimo de homem temente a Deus. O século XVIII, com sua inabalável confiança nos poderes da razão humana e na autonomia do homem racional, aposta todas as suas fichas na “luz natural da razão” como a única arma capaz de libertar o homem do domínio da ignorância e da superstição. As armas do homem iluminista são o conhecimento, a ciência e a educação que são capazes de libertá-lo das trevas e do obscurantismo que tornaram o homem impotente diante de determinados modelos religiosos, sociais e políticos que lhe tiravam toda autonomia, submetendo-o aos preconceitos, ao fanatismo, à tutela do Estado e dos poderes políticos e religiosos que decidiam em seu lugar. Trata-se agora de desenvolver a consciência individual, formando o homem autônomo em sua capacidade de conhecer o real já que todos os homens são igualmente dotados da “luz natural da razão”. Podemos ver ainda no Iluminismo a retomada do projeto pedagógico do Renascimento que coloca o homem no centro de todas as preocupações religiosas, políticas e sociais.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Filósofos Morais: Sócrates


          Sócrates, com seu foco na figura humana, inaugura a ética e abre o espaço para o desenvolvimento de toda a filosofia ocidental. Com sua constante refutação e ironia levava ao parto das ideias - a maiêutica, em homenagem a sua mãe parteira -, pelo hábito de questionamento despertou muitos sobre as necessidade de se repensar e quebrar determinados equívocos e paradigmas mal-resolvidos, anteriores a uma reflexão. O hábito de questionar desde os mais letrados e relevantes homens da Pólis até os jovens e homens simples revelando o estado de ignorância em que se encontravam provocou reações tanto positivas quanto negativas na cidade ateniense; hábito este que indubitavelmente alterou toda a história ocidental dando de presente a humanidade não só ideias estanques e discípulos que desenvolveram e/ou reforçaram sua filosofia, mas uma completa base para o conhecimento e modo como conhecer, reverberando desde a política, a ciência e a moral.
          Tratando o problema ético como um problema de conhecimento, buscava esclarecer os transeuntes da cidade por um confronto de perguntas que ironicamente levavam esses pedestres ao reconhecimento de sua ignorância frente à ideias relacionadas e mesmo essenciais a vida sócio-política, tão cara ao ideal grego. O confronto dialético em Sócrates é uma questão de diálogo. Contudo, todo este posicionamento de Sócrates em relação ao homem e sua postura ética é somente posterior à visão de tal filósofo em relação ao homem e a descoberta de sua essência; essência esta fundada na alma.

"Com Sócrates a filosofia alcançou um novo momento originário e inaugural: pela primeira vez o homem tornou-se tema da discussão filosófica. Este será o único assunto de Sócrates, inesgotável capítulo central de todas as teorias filosóficas posteriores.
Nas conversas e discursos, nas ruas e praças de Atenas, Sócrates insistia na necessidade de restaurar a imagem do homem, que deveria volta à sua interioridade, 'conhecer a si mesmo', e recuperar seu valor e dignidade moral. Esta é a base para que tenhamos um bom cidadão numa polis justa. Portanto, a ética nasce com os temas centrais, nunca esgotados, do bem, da virtude, do valor da pessoa e da sociedade justa.
Portanto, esse discurso não nasceu de uma genial intuição do sábio que medita em seu gabinete ou na montanha. Nasceu de um contexto sociopolítico em decadência vertiginosa. A ética nasceu nas praças, na análise dos fatos negativos que Sócrates via e vivia. [...]
Sócrates maduro lamentava o declínio do esplendor de Atenas, as lutas políticas marcadas exílio de Alcebíades, até a instauração do regime oligárquico dos Trinta Tiranos no ano de 404 a.C."
Olinto Pegoraro
Ética dos maiores mestres através da história.


"A democracia ateniense assegurava aos cidadãos o exercício da função legislativa: integrantes da Ekklesia (assembléia popular), podiam e deviam participar da elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da cidade. Mas o regime democrático impunha também aos cidadãos a obrigação de defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condição de membros das cortes populares, assumiam o compromisso — através do juramento heliástico — de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para a cidade-Estado e seu povo.
No ano 399 a.C, o tribunal dos heliastas, constituído por cidadãos provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-se com 500 ou 501 membros. Difícil tarefa aguardava esses juízes: julgar Sócrates, conhecida mas controvertida figura. Cidadão admirado e enaltecido por alguns — particularmente pelos jovens —, era, entretanto, criticado e combatido por outros, que nele viam uma ameaça para as tradições da polis e um elemento pernicioso à juventude. Indiscutível era seu destemor, de que já dera provas em tempos de guerra, como notória sua independência pessoal, manifestada não apenas em seu modo peculiar e inconvencional de viver, mas também em circunstâncias especiais — como quando se negou à conivência com sórdida trama política urdida pelos Trinta Tiranos que durante algum tempo haviam dominado Atenas. Mas o que sobretudo o caracterizava era a atividade a que vinha se dedicando há anos e que justamente suscitava o deleite e a admiração dos jovens, enquanto noutros despertava ressentimentos: conversar. Despreocupado com os bens materiais — cujo acúmulo era o objetivo da maioria —, usufruindo os prazeres sem se atormentar em viver à sua cata, mas também sem deles fugir em exageros ascetas, Sócrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua missão — a missão que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um 'vagabundo loquaz': dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a fazê-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as habilidades que lhes eram atribuídos. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a emitir opiniões referentes à sua própria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questões habilmente formuladas por Sócrates — que alegava que 'apenas sabia que nada sabia' — era, com freqüência, tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados à prova, muitos supostos talentos e muitas reputações de sapiência revelavam-se infundados e muitas idéias vigentes e consagradas pela tradição manifestavam seu caráter preconceituoso e sua condição de meros hábitos mentais ou simples construções verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorância da própria ignorância: situação que, não sendo ultrapassada, prenderia a alma num estéril engano e, o que era mais trágico ainda, deixá-la-ia distante de si mesma, apartada de sua própria realidade. Para alguns — os que aceitavam submeter-se à fase construtiva da dialogação socrática —, aquele reconhecimento da ignorância do justo significado das palavras representava a oportunidade de um verdadeiro renascimento: o renascer na consciência de si mesmo, condição preliminar para a tomada de posse da própria alma. Para outros, porém, era o esboroar do prestígio em plena praça pública. Ou então era a instauração de questões e dúvidas ali onde há séculos perdurava a cega certeza dos preconceitos e das crendices: no campo dos valores morais e religiosos, que orientavam a conduta dos indivíduos mas também serviam de alicerces às instituições políticas."
Coleção "Os Pensadores" - Sócrates
Editora Nova Cultural, 1987.